Despoder


Entre a esquerda inferior e a esquerda superior é possível assinalar a existência de uma extrema-esquerda que pode estimular o engendramento da esquerda superior – aliás, esta pode se apoiar naquela, não somente para surgir, mas também para se desenvolver. Essa extrema-esquerda é agovernista, pois não imagina que a “revolução” tenha que se efetuar com a posse do Estado; ela é autônoma porque seu trabalho é racional, ou seja, “faz-as-coisas-do-seu-jeito”, de modo peculiar, permitindo-lhe se alegrar com seus próprios valores, sem precisar reproduzir modelos estabelecidos; a autogestão cotidiana dos seus processos permite, principalmente, que a horizontalidade seja permanente, sem haver a necessidade de existir “o” líder, que poderia se tornar uma indesejável celebridade no interior do movimento. Portanto, essa extrema-esquerda opera o despoder, que é a necessidade de manter afastado dos seus integrantes o surgimento de uma vontade de ter o poder, que é também uma vontade de submeter-se ao poder. Ela não tem necessidade de tutelas, sua alegria é derivada daquilo que conseguiu mediante suas próprias forças. Enquanto isso é mantido, o movimento se mantém vacinado contra as constantes seduções que pretendem cooptá-lo (ao contrário da esquerda inferior, é essa extrema-esquerda que, de fato, perturba o Estado). Podemos afirmar que, atualmente, o movimento zapatista pode ser considerado como exemplo de uma esquerda desse gênero. Os zapatistas não querem derrotar um governo para permanecer no poder e subjugar o povo; eles convidam todos os povos que resistem a participar ativamente do seu próprio destino, contrariando o modelo hegemônico da venda da força de trabalho que gera lucros exorbitantes (são os povos resistentes que, dizem os zapatistas, são dotados “de uma sabedoria fundamental: a sobrevivência em condições adversas”); eles enfatizam a importância da pluralidade das diferenças de valores entre os povos; as ciências e as artes são, para eles, “a única oportunidade séria de construção de um mundo mais justo e racional”, pois são elas que “resgatam o melhor da humanidade” [1]; eles são um movimento guerrilheiro que tem mais vitórias políticas do que militares, pois as armas são um meio de defesa e não de ataque... Algumas das particularidades da esquerda superior estão aí: o despoder; a resistência diante do “mundo dos estúpidos” (o trabalho que não é sugado pelas exigências do mercado); a afirmação da existência de uma igualdade (pluralidade de povos com valores próprios, que são “iguais na diferença”); o combate à estupidez ao disseminar arte e ciência (e, para nós, acrescentamos a filosofia); o espírito guerreiro que luta com simplicidade e sagacidade, e não de qualquer jeito, sabendo também se servir de estratégias que dispensam armas (a recente indicação pelos zapatistas de uma mulher indígena para as eleições presidenciais do México pode ser considerada uma estratégia guerreira, e não uma vontade de ter o poder [2]). Mas, apesar disso, o zapatismo é, para nós, uma esquerda intermediária, porque não se eleva à continuidade universal que faz e desfaz todas as formas. Sua igualdade está restrita à forma humana, e a revolução ainda é humana demais (“o zapatismo segue apostando, em vida e morte, pela Humanidade”). Sem dúvida, é admirável o fato de a esquerda intermediária realizar efetivamente o despoder – essa é a sua diferença principal com relação à esquerda inferior. Mas, embora essa diferença seja considerável, trata-se ainda de uma diferença de grau e não de natureza, porque sua percepção se mantém limitada às divisões imaginárias – ela se posiciona a favor dos oprimidos, o que é, sem dúvida, importante, mas fica por aqui, sem apreender o que está sob as formas identitárias, e que é comum tanto aos “opressores”, quanto aos “oprimidos”. Portanto, é preciso colocar-se na perspectiva do aquém-do-humano, ou seja, das tendências voluptuosas, desejantes e impulsivas que tecem qualquer sociedade. É ali, no abstrato e não no concreto, na causa e não no efeito, que a esquerda superior age para criar saídas em um mundo hipnotizado pelas formas e pelos ideais.

1. Os  trechos citados estão em Convocatória zapatista às atividades de 2016, em https://goo.gl/B9Yehi

2. “Zapatistas indicam mulher indígena para a presidência do México”, em https://goo.gl/t11WYW

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Aforismo publicado no livro Simplicidade Impessoal (2019), de Amauri Ferreira.

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