Apropriação


As invenções tecnológicas que são utilizadas para distrair, para reforçar a vaidade – o que produz uma pequena alegria vinculada ao efeito causado pelos olhares invejosos – pode nos levar a repudiá-las, como se não fosse possível dar-lhes um outro sentido. Segundo este raciocínio, não haveria motivo, a princípio, de utilizarmos certas invenções – mas é por isso que os homens são persuadidos a consumirem aquilo que, sem os efeitos que lhes são prometidos pela publicidade (e que, apenas em parte, são cumpridos), não veriam motivos para se sacrificarem para obter algo. Se a publicidade promete o prazer ao consumirmos um produto, esse efeito é geralmente cumprido; por outro lado, quando há promessa de “maior tempo livre”, dificilmente isso ocorre. Eis então o seguinte cenário: o uso das invenções tecnológicas oferece algum prazer, alguma alegria, mas também um sentimento cada vez mais incômodo de ausência de tempo. Por isso que nos parece leviano – e até cínico – mandamentos como “consumo consciente”, “tire o planeta do sufoco”, “sustentabilidade” e muitos outros clichês que estão em voga numa época onde está evidente que a gravidade crescente dos problemas ambientais estão vinculados ao modus operandi do capitalismo. É até infantil afirmar que não devemos consumir bobagens para “salvar o planeta”. Para quem tem uma existência insossa, pueril, quase esgotada, as bobagens são consumidas compulsivamente porque, como já dissemos, seus efeitos não são fictícios. Mas o que estamos expondo é o problema do uso das coisas: a invenção é chamada de bobagem porque se faz um uso irresponsável dela. Se não agirmos sobre o modo enraizado de viver da maior parte dos homens, os moralistas de plantão continuarão a imperar com seus clichês. Portanto, chamamos, aqui, de apropriação o uso das invenções tecnológicas a serviço, não mais da pura distração, mas sim para provocar o pensamento na maior parte possível dos homens. Afinal, não acreditamos que o pensamento seja exclusividade de alguns seres “privilegiados”... A apropriação a serviço de um desejo criador, generoso, conduzido pelo amor e que, por isso mesmo, é raramente persuadido pela publicidade, opera necessariamente revoluções inaudíveis.

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

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